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As malhas que a droga tece: o retrato do problema na Invicta

Atualizado: 19 de jan. de 2024

O consumo e o tráfico de droga no Porto são um problema estrutural que tem vindo a aumentar nos últimos anos. O CONTRAPONTO foi conhecer este outro lado da cidade.


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Fotografia: Leonor Couto/CONTRAPONTO


O Porto, à semelhança de outras metrópoles europeias, é uma cidade de contrastes. Caminhando pela Invicta, como é amplamente conhecida, é possível destacar as principais diferenças entre as várias zonas da cidade. Enquanto na Foz e nas Antas, consideradas as zonas nobres da cidade, encontramos um certo estilo de vida e um diferente ordenamento de território, na zona de Campanhã e Pasteleira destacam-se os problemas relacionados com a droga. É por isso, uma cidade de desigualdades, tanto sociais como económicas. 


É na zona ocidental da cidade que estão os alicerces do consumo e venda de droga. No antigo Bairro do Aleixo, que demorou oito anos a ter as suas cinco torres demolidas (a última em 2019), a droga estava presente no dia-a-dia de quem lá vivia, sendo um verdadeiro ponto de recolha (e não só) de droga. Considerado em tempos um dos bairros mais perigosos do país, esta zona de habitação social era um verdadeiro centro comercial ao ar livre e palco de muitos conflitos. 

 Subindo a escarpa do Douro em direção à Boavista, está o Bairro Pinheiro Torres, muito conhecido por todos os portuenses. É aqui que, depois da demolição do Aleixo, se instalou algum do consumo de droga da cidade.  

Façamos então uma pequena viagem ao passado: o triângulo Aleixo, Pasteleira Nova e Pinheiro Torres funcionou durante longos anos. Com a demolição do Aleixo “desfez-se o triângulo, fazendo com que os morados se deslocassem para Pinheiro Torres ou Pasteleira Nova”. 

 

Lourenço, nome fictício, vive no Pinheiro Torres há 43 anos. É reformado e assume viver uma vida pacata e segura: “O bairro é seguro. Vê-se de tudo. Há pessoas boas e más, como em todo o lado... é como tudo. Vamos a uma rua há algodão e nós passamos despercebidos, mas se virmos uma beata já nos cheira mal. O que fica é sempre o mau.”  


No entanto, não esconde o lado mais escuro do bairro e afirma que o tráfico e o consumo de droga é uma realidade vivida há já muitos anos. “No início tudo era feito de forma pouco visível, atualmente tudo se faz sem recato.” 


Lourenço garante que as pessoas perderam e que, no início, “tudo era feito de forma pouco visível, atualmente tudo se faz sem recato”. Há locais no bairro que “estão tomadas” por estes grupos - moradores, vendedores, vigilantes e itinerantes). Nestas zonas, o uso de telemóvel é “praticamente censurado” e ao passar, caso se trate de um conhecido, é audível a expressão “é morador”, caso contrário é emitido um aviso. “Volta e meia assiste-se a agressões físicas entre os vendedores e os consumidores e, com alguma normalidade, assistimos ao som de tiros”. 


Quando questionado sobre o estereótipo que se enraizou sobre este problema, o morador não hesita em afirmar: “O tráfico e a droga não estão só nos bairros sociais, anda por aí boa gente a levar vida de barões e baronesas. O bairro pelas suas características dá jeito aos barões e baronesas.”

“O tráfico é geracional. Há avós, filhos e netos neste negócio!”

A droga é uma realidade no bairro para todas as faixas etárias. Enquanto alguns tentam seguir outro caminho, para a maior parte é quase “genético”: “O tráfico é geracional. Há avós, filhos e netos neste negócio!”.  


Lourenço vive há muitos anos no bairro e conhece Pinheiro Torres de olhos fechados. Ainda que afirme viver uma vida pacata, durante a conversa, confessou que nem sempre é um mar de rosas. Para finalizar a nossa conversa questionamos como é que alguém reformado e longe do mundo da droga vive com esta realidade:  


“Se eu tenho de respeitar um drogado, ele também me tem de respeitar. Fala-se muito nos direitos dos toxicodependentes e dos consumidores, que eu entendo, mas e os direitos das restantes pessoas? Somos obrigados a assistir em plena via pública a este tipo de comportamentos”. 


Rumando à zona oriental da cidade, chegamos a Campanhã. É a maior freguesia da cidade e faz fronteira com o estádio do Dragão. 


O CONTRAPONTO foi conhecer o trabalho da ARRIMO, Organização Cooperativa para Desenvolvimento Social e Comunitário, que atua como um importante agente no que ao consumo assistido de droga diz respeito. A associação sem fins lucrativos começou a exercer a sua atividade em 2008, sete anos depois da descriminalização do consumo de droga em Portugal, que veio colmatar muitos dos, até então, riscos do consumo de droga na via pública. A instituição atua em diferentes frentes e é pioneira no tratamento das dependências, conhecida pela sua abordagem inovadora e humanista no que redução de riscos e minimização dos danos diz respeito. Atualmente, a equipa multidisciplinar do Porto é composta por cerca de 15 profissionais, incluindo enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e técnicos de intervenção psicossocial. Jorge Rocha, primeiro Vogal do Conselho de Administração da ARRIMO, partilha a experiência e os desafios enfrentados pela organização, especialmente perante as mudanças recentes no cenário das políticas de saúde e assistência social. 


Essa abordagem humanista é particularmente evidente na gestão das salas de consumo assistido no Porto, “onde o consumo é monitorizado, reduzindo os riscos associados ao uso de substâncias nas ruas da cidade”. A iniciativa desempenha um “papel fundamental na segurança e na saúde pública, oferecendo um ambiente controlado e seguro para aqueles que a utilizam com frequência, representando, assim, uma nova frente na luta contra as dependências em Portugal”.  


Apesar de ser um modelo eficaz internacionalmente, a implementação das salas de consumo em Portugal enfrenta diversos obstáculos devido ao estigma e aos equívocos associados a elas. Muitos acreditam erroneamente que essas salas incentivam o uso de drogas, quando, na realidade, “estão focadas na redução dos danos relacionados ao consumo”. Jorge enfatiza a “importância de sensibilizar o público e as autoridades acerca dos benefícios desses espaços controlados”.  


A sustentabilidade da ARRIMO é uma preocupação constante, especialmente após as mudanças no SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências). O Vogal da administração realça a “necessidade de um suporte contínuo e de uma estrutura estável para manter os serviços vitais.  

Além do trabalho a nível das dependências, a ARRIMO envolve-se em diversos projetos sociais, incluindo o acolhimento de famílias de refugiados e a gestão do programa “Escolhas”: “Cada projeto é um passo para uma sociedade mais inclusiva e consciente” reforça o Vogal do Conselho de Administração.  

“Cada pessoa que começa a organizar-se, que adere ao tratamento, que procura ajuda, é um sucesso para nós”. 

Com um olhar determinado no futuro, a ARRIMO continua a adaptar-se e a procurar novas formas de sustentar o seu trabalho essencial. O objetivo é claro: fazer a diferença, uma vida de cada vez, reafirmando o compromisso da organização em servir a comunidade e transformar vidas no Porto. A importância dada a cada caso individual é a chave para o sucesso, como enfatiza Jorge, para quem “cada pessoa que começa a organizar-se, que adere ao tratamento, que procura ajuda, é um sucesso para nós”.  


Apesar dos avanços, aindaexistem desafios significativos para a organização. A falta de respostas habitacionais e oportunidades de trabalho continuam a ser obstáculos para muitos dependentes em recuperação. A sala de consumo assistido é apenas um passo na direção certa, mas há uma necessidade premente de mais recursos e respostas sociais para uma assistência humanitária mais eficaz.  


Uma das iniciativas da ARRIMO, em parceria com o Ministério da Saúde, e que teve início em 2008, é o trabalho em campo com carrinhas descaracterizadas que se deslocam até pontos estratégicos, e previamente definidos, dando apoio aos utentes que procuram a associação. 


O CONTRAPONTO acompanhou uma das equipas que faz parte deste projeto, centrando-se na zona ocidental da cidade (da qual a freguesia de Campanhã faz parte). O dia começa por reunir todo o material necessário na carrinha que parte da Rua Padre António Vieira, junto à Estação de Campanhã, para que o apoio dado seja o mais completo possível. Do material carregado fazem parte utensílios para o consumo de droga, como é caso folhas de papel de alumínio, toalhetes de desinfeção, bem como o fornecimento de preservativos, para prevenir o surgimento de doenças sexualmente transmissíveis. A ARRIMO recebe também várias doações de vestuário, que vão desde casacos e camisolas até ao calçado, e são fornecidas aos utentes que realmente precisam. 



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A carrinha da ARRIMO. Fotografia: Leonor Couto/CONTRAPONTO

Às 10h30 partia da sede da ARRIMO a carrinha que tinha como destino final a zona envolvente ao Bairro do Cerco do Porto, um dos maiores da cidade, fazendo a primeira paragem junto ao Bairro João de Deus, que se situa no limite norte da Invicta. 


À hora de chegada, é fácil perceber que são vários os utentes que contam com a chegada da carrinha diariamente, e que cumprem, escrupulosamente, com o a visita à carrinha. O CONTRAPONTO tentou falar com utentes que visitavam a carrinha nesta primeira paragem do dia, mas sem sucesso.  

No interior está uma enfermeira, uma assistente social, e um técnico que atua como motorista e dá apoio no que é necessário. 


A profissional de saúde recolhe o nome dos utentes, numa forma de monitorizar o consumo que é feito e evitar a duplicação de doses, antes de fornecer metadona, uma substância narcótica do grupo dos opióides, utilizado principalmente no tratamento dos toxicodependentes de heroína. 


Depois de pouco mais de meia hora no local, a equipa desloca-se para poucos quilómetros a sul e instala-se na Alameda de Cartes, nas traseiras do Bairro do Cerco, onde o número de utentes é significativamente maior, obrigando a uma paragem de pouco mais de uma hora. É aqui que se distribui a maior quantidade de metadona do dia e onde chegam vários utentes ao longo daquela hora. 


Embora seja visível que muitas pessoas não dependem só da metadona para sobreviver, há alguns utentes que falam da ARRIMO com um sorriso. 


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Carla Ramos. Fotografia: Leonor Couto/CONTRAPONTO

Carla Ramos é toxicodependente desde muito jovem. Em conversa com o CONTRAPONTO, a mulher conta que o consumo de droga apareceu na sua vida muito cedo, com apenas 12 anos, tendo sido obrigada a consumir, tendo sido inclusive vítima de constantes abusos sexuais e físicos. 


Carla assume que percebeu que o seu futuro estava cada vez mais comprometido e que “decidiu aceitar” o facto de ter começado a consumir droga, um ano depois de começar. Ferros quentes e violações, é assim que Carla relata os atentados à humanidade que já passou (e passa) na sua profissão: a prostituição.

“Somos humanos como eles."

A mulher afiança que a prostituição não é uma profissão fácil e que, embora traga riscos acrescidos para a saúde da prestadora do serviço e do cliente. É este um dos meios de “sustento” de Carla, que utiliza o valor arrecadado por cada cliente para a compra de droga e alimentos. A mulher relata que cobra valores que rondam os 15/20 euros por cliente, embora já tenham oferecido dois euros pelo serviço, situação que recusa sempre. Carla revela que as violações durante o ato são uma constante, e que alguns clientes “procuram prazer” a todo o custo, mesmo que isso implique ferir quem está do outro lado da moeda, relembrando que quem trabalha neste ofício não o faz por amor à camisola, mas sim por necessidade, vincando que são “humanos como eles (clientes)”. 


É nas traseiras da Loja do Cidadão, no Porto, que Carla vive há dois anos, depois de ter ficado sem teto após o falecimento do companheiro, com quem esteve 19 anos, até ao seu falecimento, em 2021. A sogra (relação apresentada por Carla, embora não tenha sido casada legalmente), despejou a mesma de casa após o falecimento do companheiro, forçando Carla a procurar uma solução para sobreviver. A escolha de uma tenda não foi a ideal, mas foi a solução mais fácil de encontrar. 


O apoio da ARRIMO chegou num momento-chave na vida de Carla, que foi encontrada a ressacar na rua, depois de ter consumido doses substancialmente superiores ao que o seu organismo aguentava. A toxicodependente fala da associação com um sorriso, e faz questão de garantir que o seu trabalho é devidamente reconhecido: “O Sr. António (presidente da ARRIMO) é que me ajudou”, assegurando que a ajuda da instituição é seguida “como uma religião”, ou seja, a carrinha faz há 31 anos parte da rotina de Carla, que se mostra muito grata por todo o apoio recebido. 


Carla Ramos, toxicodependente, conta a sua históriaCONTRAPONTO
“Deixei de consumir pó à custa da carrinha” 

Mas o apoio da ARRIMO não passa só pelo fornecimento de metadona. Os utentes recebem, além de um rendimento mínimo, medicação para vários problemas de saúde. Carla foi operada à tiroide há alguns anos, sendo a associação a responsável pelo fornecimento da medicação para o controlo da doença. Além de deixar claro que “deixei de consumir pó (substâncias como a cocaína) à custa do apoio recebido pela carrinha”, Carla revela que irá em breve receber ajuda para um tratamento ortodôntico, comparticipado pela organização. 


Já perto do fim da conversa, a toxicodependente faz questão de deixar clara qual é a diferença entre um drogado e, passando a redundância, um toxicodependente: 

“O drogado é irresponsável, imaturo e egoísta, enquanto o toxicodependente tem consciência. Sabe o que é o bem e o mal. “

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Pequena dose de “Crack”. Fotografia: Leonor Couto/CONTRAPONTO

Carla termina a sua conversa com o CONTRAPONTO reforçando o que foi dito anteriormente e explicando que um toxicodependente está ciente das suas escolhas, ao invés de um drogado, que consome, em regra geral, doses mais elevadas e substâncias mais fortes. Questionada sobre a aparente falta de apoio por parte da Câmara Municipal do Porto (CMP) e do poder central, Carla acredita que “eles têm medo de mostrar o que está obscuro”, referindo-se à CMP, e garantindo que a autarquia “não quer ver e não faz nada”. A toxicodependente fala revoltada sobre a forma como outros grupos sociais são ajudados e este em especial não, afincando que “o que importa é o euro”. 


Carla reitera afirmando que “a humanidade está esquecida, escondida numa nuvem”, e que só de tempos em tempos é que a sociedade se lembra deste grupo de pessoas, que não deixam de ser seres humanos. 


Está claro que o Porto enfrenta, atualmente, um desafio significativo em relação ao tráfico de droga nos bairros sociais da cidade e Carla é apenas uma gota do problema. 


Embora não seja da competência da Câmara Municipal o combate ao tráfico de drogas, uma vez que essa responsabilidade é exclusiva das forças de segurança pública, que estão sob a tutela do Ministério da Administração Interna, a autarquia, quando questionada pelo CONTRAPONTO, declarou, por meio escrito, que tem investido em diversas medidas com o objetivo de “mitigar este fenómeno”.  

Um investimento que passa por apoiar financeiramente a sala de consumo vigiado junto ao Bairro da Pasteleira, num valor total de cerca de 650 mil euros. Além do mais, a Câmara Municipal afirma estar disponível para comparticipar a criação de uma unidade móvel de consumo vigiado, com a finalidade de oferecer o mesmo serviço da sala de consumo em vários pontos da cidade do Porto.   


Outras ações nas quais a autarquia tem vindo a investir para reduzir o problema do tráfico passam pelo aumento do número de veículos destinados ao patrulhamento da cidade, com a entrega de dez viaturas à Polícia de Segurança Pública (PSP) para o efeito. Agrega-se, ainda, um sistema de videovigilância que vai englobar, quando estiver totalmente concluído, a zona oriental e ocidental da cidade do Porto – neste momento ainda está numa primeira fase, com câmaras instaladas apenas entre a zona do Marquês e a Ribeira. 


A Câmara Municipal do Porto afirma que a vigilância é um investimento que vale a pena, no sentido em que “aumenta a perceção de segurança dos cidadãos”.   


Para enfrentar a questão do tráfico nos bairros sociais da cidade, a administração local considera crucial uma presença policial ativa. Entretanto, na ausência desse cenário, o município entende que a implementação da videovigilância é uma medida preferível do que não adotar nenhuma ação.  

“Quem não caça com cão, caça com gato”

Durante uma Assembleia Municipal realizada em outubro, o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, expressou a preferência por uma presença policial nos bairros em vez de câmaras de vigilância, usando como exemplo o patrulhamento permanente da PSP na Pasteleira, que acabou por ser interrompido. No entanto, Moreira referiu que “quem não caça com cão, caça com gato”, portanto, não existindo polícias a circular ativamente nos bairros, existem câmaras.  


Apesar dos esforços que a autarquia tem feito para lidar com a crescente questão do tráfico de droga que se verifica, principalmente, nos bairros sociais da cidade, existe dificuldade em se conseguir realizar um controlo total, mesmo tendo a polícia à disposição. Isso ficou demonstrado aquando da presença policial na zona da Pasteleira e no Bairro Pinheiro Torres, que desde o início do ano, e até meados de julho, esteve em constante vigilância. O que se verificou durante esse período foi uma deslocação do fenómeno da criminalidade associada à venda de estupefacientes para outros locais da cidade, como a zona da Sé e o Bairro do Cerco.  

“Se tens consciência, vai em frente, se não tens, vais abaixo”

Carla Ramos, toxicodependente


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