Da glória de campeão mundial ao desafio de treinador: a carreira de José Bizarro
- Margarida Gomes Rodrigues
- 15 de jan. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 19 de jan. de 2024
José Bizarro (J), o antigo guarda-redes da Seleção Portuguesa de Sub-20 que foi campeão do mundo de futebol em Riade, na Arábia Saudita, em 1989. O CONTRAPONTO (C) viajou até Moncarapacho, em Olhão, para conversar sobre a carreira do atual treinador do Lusitâno Ginásio Clube Moncarapachense.

Bizarro depois de ser campeão do mundo. Fotografia: DR
C: Como é que começou no mundo do futebol?
J: Fui atleta desde os 13 anos, até chegar a treinador. Fiz natação durante 8, 9 anos, em alta competição. Mas tinha o cheiro do futebol e na natação tinha um problema numa das virilhas, que me incomodava um bocadinho. Então, foi um pretexto para chegar a casa e dizer aos meus pais que não conseguia, que me doía muito e que não podia continuar com a natação. Estive três ou quatro meses parado. Jogava nas férias, todos os dias na rua, com os vizinhos de lá de casa e na escola, todos os intervalos jogava futebol e os professores ficavam "danados" comigo, porque entrava sempre nas aulas todo suado. Cheguei a casa e disse ao meu pai que gostava de ir experimentar treinar no Leixões e ele perguntou-me: "então, já não te dói a virilha? É que se dói a virilha na água para jogar futebol vai doer muito mais".
E na altura confesso que, se calhar, foi por isso que fui parar a guarda-redes, porque não tinha muito jeito. Na escola tinha jeito, claro, mas a nível de clube não tinha muito jeito. Lembro-me perfeitamente que com 10 ou 11 anos tinha 1,81m.
Hoje tenho 1,84m e fiquei com a sensação que eles ficaram comigo por "ser grande". E assim começou. Dois anos depois fui parar ao Porto e aí surgiu a hipótese da seleção. Fui para a Seleção Nacional, nos Sub15 e Sub16, e depois fui parar ao Benfica.
C: Como é que foi ir para um local como a Arábia Saudita, em 1989, e estar assim tão longe de Portugal para representar o país?
J: Em termos de estar longe de casa durante bastante tempo já estávamos habituados, porque para além destas fases finais, fomos muitas vezes jogar contra França, Suíça, Alemanha, Áustria, Itália, Checoslováquia etc... Nesse aspeto estávamos habituados.
Agora, efetivamente, a Arábia é um bocadinho diferente. Na primeira semana fazia-me um bocado de confusão não ver mulheres no hotel e, na hora da reza, lembro-me perfeitamente de acordar durante a noite com a "buzina" da cidade. Chegou a acontecer estar dentro de lojas e ser expulso, porque estava na hora de rezar e o dono da loja dizia "olhe, se quiser venha daqui a meia hora, mas agora temos de fechar". Chegou também a acontecer estar a ver um jogo no estádio, com o estádio cheio e, de um momento para o outro, ficava vazio. Passado meia hora estava cheio outra vez, e nessa meia hora eles tinham saído para rezar. Mas depois, como estivemos lá ainda bastante tempo fui me habituando, porque, o homem, o ser humano, é um animal de hábitos.
José Bizarro sobre a vitória da seleção portuguesa de Sub-20 em 1989.
C: Qual foi a sensação que sentiu ao ganhar o campeonato?
J: Isso é indescritível, porque só acontece, na maior parte das vezes, uma vez na vida. E não acontece a toda a gente! Sou um privilegiado nesse aspeto, porque efetivamente consegui. Atendendo à idade e, estando muito longe, só senti verdadeiramente o "pico" quando aterrei no aeroporto de Lisboa. Lembro-me que a minha avó não saía de maneira nenhuma de casa e, quando dei por mim, tinha a minha avó em Lisboa à minha espera. Estava lá um senhor, já com uma certa idade, um homem com os seus 70 anos, que nunca tinha visto na minha vida e nunca mais voltei a ver. Pediu-me autorização para levar as malas que tinha trazido até à minha casa. Entrei no carro e o senhor veio atrás no carro dele a transportar as minhas malas.
C: Como é que se conseguiu destacar, tão jovem, em dois clubes tão importantes e como é que foi a passagem de um clube para o outro?
J: É muito simples. O FC Porto e o SL Benfica são dois clubes enormes e eu tive a felicidade de representá-los. São enormes. Na altura, comecei a ir para a seleção com 15 anos e o Vítor Baía era o terceiro guarda-redes do Porto. Continuei no Porto e na seleção e na altura era capitão. Depois o Baía começou a jogar com a seleção e iamos os dois guarda-redes do Porto, o capitão e o suplente. Chegávamos ao Porto e jogávamos de 15 em 15 dias, ou seja, eu fazia um jogo, ele fazia outro, e com 15 anos, custa um bocado a aceitar. O meu pai foi trabalhar para Lisboa e surgiu a hipótese do Benfica que oferecia mais do que eu ganhava no Porto. Já não estava bem no Porto e decidi mudar. Na verdade, fui eu que desencadeei as trocas entre clubes rivais portugueses. Agora, se voltasse atrás, não tinha trocado, mas na época a conjuntura da mudança foi favorável em tudo.
"De repente estava a 300 kms da minha família e só fazia uma chamada por semana de 5 minutos."
C: Depois foi jogar para Espanha. Qual foi a maior diferença que sentiu no futebol espanhol, em relação ao português?
J: Na segunda liga em Espanha, naquela época, os jogos passavam todos na televisão, que estava todos os dias nos meus treinos. A minha estreia em Espanha foi com 30 mil espetadores, o que não é possível em clubes como o Marítimo, em Portugal. Equipas do meio da tabela em Espanha lutam mesmo para ser campeãs, não há comparação. A nível de ordenados, estádios, mediatismo, é tudo muito diferente de Portugal.
C: Se pudesse escolher apenas um momento, qual é que diria que lhe ficou efetivamente marcado na memória?
J: Foi um momento no Estádio das Antas, na fase final dos juvenis, em que eu estava lá sossegado a ver o jogo... nem estava a gritar golo nem nada. Depois acabaram por reparar que era eu e chatearam-me um bocado. Isso marcou-me.
C: Depois de voltar de Espanha continuou a jogar em alguns clubes portugueses e acabou como treinador. Como foi passar de guarda-redes a treinador?
J: Sempre disse à minha família que ia acabar cedo, porque atingi o nível mais alto que se pode atingir e a cada ano que passava estava a perder a motivação. Queria muito ser treinador e então pensei que quanto mais cedo começasse também mais cedo chegaria a um patamar superior. Quando acabei de jogar com 35 anos já tinha o nível 3, só me faltava um. Depois, mais tarde, apercebi-me que podia ter feito mais 2 ou 3 anos facilmente e arrependi-me.
C: Sentia mais pressão a ser treinador ou jogador?
J: Como treinador, sem dúvida... Não há comparação possível! O treinador não tem feriados, não tem dias de descanso e o dia em que mais trabalho é mesmo o meu dia de folga. Passo a maior parte das minhas férias ao telefone na praia. A pressão é muito maior. Um treinador não consegue "desligar" completamente.
C: O que mudou no futebol desde que passou de jogador para treinador?
J: Eles agora saem do chão de outra forma e raramente caiem, tentam proteger-se. O jogo de pés mudou bastante, só o comecei a fazer aos 26 anos, ou seja, mais de metade da minha carreira já tinha ficado para trás. Sou contra essa ideia! É verdade que se eu tiver dois guarda-redes diferentes, vai jogar o que joga melhor com os pés, mas para mim o papel do guarda-redes é sobretudo defender golos. A mentalidade também mudou muito ao longo dos anos. Para além disso, a falta de dinheiro em Portugal é muita, ninguém vai ver clubes se não forem os três maiores a jogar. Noutros países os espectadores vão para apoiar o clube, independentemente do adversário. Esse apoio aos clubes é fundamental e em Portugal existem muitas polémicas. Quando temos filhos, por exemplo de 3 ou 4 anos, não nos sentimos confortáveis em levá-los a um jogo, porque há sempre receio de haver problemas no estádio.
Commentaires